segunda-feira, dezembro 27

Sentimentalismo Barato

“Ensina-nos a contar os nossos dias para que o nosso coração alcance sabedoria” Salmo 90:12

Dia,noite,dia,noite,dia,noite,di,oite,d,ite...dite!
14 anos.
Os dias passam devagar no quarto 302, eu sei disso. Quando eles terminam nem me dou conta, mas acrescento às minhas contas. É estranho que minha dor soe como sentimentalismo barato.
A enfermeira velha fechou a janela, sempre peço pra ela fazer no fim do turno. Tem lá seus 50 e tantos anos, uma cabeleira loira escorrida sobre os ombros, é feia. Na verdade já nem preciso mais pedir, ela atende a cada um dos meus pedidos zelosamente, como cuidadora fiel que se transformou ao longo destes tantos dias. 246. Daqui a pouco faço um ano.
Pra você o que define a alternância dos dias é a sucessão de astros no céu, pra mim é a sucessão de técnicas no meu quarto. Meu plantão preferido é o noturno par, eu gosto em especial da menina nova dos olhos negros como duas azeitonas gordas, dias desses ela me contrabandeou um chocolate, foi reprimida pelo médico mas fiz uma chantagem emocional com ele. O médico é um cara bacana, é novo e acabou de terminar a residência, tem um sotaque engraçado, tem horas que peço pra ele falar em espanhol comigo que entendo melhor que o portunhol dele, é argentino. Não gosto da assistente social e não entendo por quê ela acha que é psicóloga.
Passo as horas lendo, fazendo palavras cruzadas e circulando palavras de livros. Eu pego uma página e vou escolhendo algumas palavras até que façam um mínimo sentido, noite passada eu fiz um poema:
“Maravilhoso tempo que o sol estava no céu
Minutos,não muito
Duvido que qualquer coisa seja normal
Verdade ricocheteando na água, tudo é perdido e independente
Alguma coisa disso tudo é real?
Dentro de um sonho eu ficaria desapontado
Decidiu se arriscar”
(A Cabana, página 159)
Sento no corredor e ouço as conversas das pessoas, assim como faço com os livros eu junto pedaços das discussões e monto histórias, empoleiro simples desarranjos para tramar ações que provavelmente nunca existiram. Em alguma das semanas passadas a família do 307 trouxe um advogado aqui, eles queria que ele assinasse uma procuração. Ele não assinou, levantou de rompante e saiu gritando com todo mundo dizendo que ele ainda tava vivo, que ele é quem trabalhou pra comprar tudo que usavam e ainda tinha agüentar essa bandalheira. Patifaria! Ri bem do advogado arrumando o terno enquanto corria pelas escadas deixando cair os papéis que depois eu fui lá e recolhi pra fazer algum poema, mas essa linguagem chula dos tribunais não tem graça nenhuma. O 307 morreu.Eu passo mal toda hora.
A mulher do fim do corredor recebeu uma visita, era uma perua que disse que veio de longe só pra visitar ela, disse que tava nos EUA, que tinha passado numas cidades com nome engraçado. Não sei onde fica Pasadena, mas com certeza deve ser um lugar bem mais chato que Pasárgada. Ela sorriu sem graça ao me ver. A Dona Helena não gosta da mulher, mas chorou bastante, era a primeira visita em tempos. Acredite tem gente aqui que não recebe ninguém, passam meses e a pessoa fica ali morrendo sozinha.
Eu não, meus pais tão sempre aqui. Eu tenho dó deles, não sei se vou me recuperar mas tenho tempo, a vida toda. Eles não, passam o dia correndo atrás das ruas, usam roupas que não gostam, fazem coisas estranhas e nem mesmo mais se falam. Não sou eu que to doente, é o mundo. Assisti TV até tarde com meu pai, tava passando um show do Renato Teixeira, ele gosta, eu também, mas não falo isso pra ele, vai que ele acha que a gente se parece. De manhã minha mãe veio trazer o café da manhã, hoje é sábado e deixam eu comer alguma coisa um pouco melhor, pão com nuttela e Yakult. Tá, o Yakult não podia, mas eu tomei mesmo assim.
A noite foi ruim, dormi mal. Ando me sentindo meio fraco, hoje é aniversário da minha irmã, mas ela tá gripada e não vão trazer ela aqui. Liguei a webcam e conversei meia hora com a Bia, ela tá fazendo 9, ela me contou que tá lendo a Bíblia. Foi com 9 que me apaixonei por Eclesiastes. Acho que sou meio diferente mesmo, mas isso aqui não é autobiográfico. Pedi pra ela olhar uma estrela no céu, qualquer uma, e imaginar o quão longe ela tava, então disse pra ela sempre pensar em mim como uma estrela, eu vou continuar a brilhar.
Não quero visita hoje, quero gastar meu tempo com quem eu gosto. Já me sinto melhor, o médico falou que posso começar a pensar em alta. Amanhã faço um ano aqui dentro, a Sra Carolina do andar de cima já tem dois anos de casa, mas ela não se mexe, nem fala,nem olha,nem ouve. Eu faço tudo isso, e eu escrevo. Por pior que seja a escrita ela fica. Talvez alguém goste.
Terça feira eu vou embora. 372 dias. Festa de despedida, nunca tirar esse roupão foi tão feliz. Fazia tempo que não via meu pai chorar. Eu sobrevivo.
A vida lá fora é outra, mas contei os dias e vou continuar a contar.