quarta-feira, setembro 11

Love Song

No silêncio das concentrações forçadas, dos números, contratos e planilhas desinteressantes, um alarido rompeu o silêncio. Era o primeiro sinal de vida daquele objeto, a faxineira terceirizada, não o celular.
Todos riram, quase sem querer é verdade, mas riram num sentimento quase infantil da risada do ridículo. Riram da música, velha e brega, distante do mundo clean e limpo deles (sinônimos reforçam a tese. Estrangeirismos fazem parecer mais culto, quando na verdade são é mais bregas, mais até do que a música, mas de mim não vão rir, não na minha frente).
A menina estava só passando, como só passa nesse cotidiano, e o telefone tocou, num love song daqueles das coletâneas que ninguém compra. Tem, ou deve ter, em torno dos 28, talvez 30 anos, mas não tem como saber, já que nunca falo com ela, mas ri. É engraçado o diferente, e quase nem deu pra perceber que ela abaixou a cabeça de vergonha e apertou o passo de uma vez, quase saiu correndo do ambiente inóspito. Ela não é desse mundo, eu sempre considerei que eu também não sou, mas ri do toque de celular dela.
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Depois de duas fileiras e 10 minutos, ela limpava a mesa da frente, quando me distrai olhando o rosto dela, tem uma bochecha rosa e gorda, um cabelo sempre preso e no alguma água enchendo o olho, quase chora. Distrai pensando em uma crônica antiga minha, escrevi quando tinha 16 anos e contava a história de um cara que ficava montando histórias a partir dos retalhos de conversas que ouvia pela rua, e assim através desses montes de diálogos desconexos montava um enredo particular, enchendo de aventuras, amores e tristeza a vida das personagens reais, desconhecidos na rua. Pensei também nas mensagens de amor que vi um estranho trocando ontem no Circular Sul, um menino do cabelo enrolado, sapato envernizado vermelho e colete social. A senha de desbloqueio do celular dele era um M. Era crente (depois de anos na igreja aprendi a perceber quem é, o que pode ser bom, ou pode ser só o reflexo da subcultura evangélica). Trocava torpedos de conquista com uma menina, dizia que queria conhecer ela melhor. Torci por ele.
Quando acordei ainda olhava a faxineira, numa distorção de Martin Buber filosofo que nunca nos relacionamos como Eu-Tu, ela nunca foi alguém como eu sou. As lágrimas quase escorriam, pensei em qual a história eu conseguia enredar para ela, onde ela morava, o que ela sofreu, o que ela amou, quantos anos realmente tinha, qual eram os sonhos dela. Poderia ser uma grande história, como acredito que qualquer um pode ser uma, mas não sabia nem seu nome, nunca tive interesse em saber. Tiver uma vontade incontrolável de perguntar se tava tudo bem com ela, não perguntei. A resposta mais fácil é culpar minha timidez, mas a verdade é que não perguntei por ter sido ensinado a não me interessar, nem por ela, nem por você, nem por ninguém.
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Dia desses alguém disse que viu ela comendo uma marmita perto daqui, agachada num canto na frente de uma loja fechada, atrás de uma mureta. O alguém me contou isso com estranheza, disse que parecia um bicho. Acho que a estranheza é que esse objeto consegue até ser um bicho.
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Atrás de mim alguém foi melhor com ela e puxou conversa, ouvi então parte da história, da separação dos filhos, dessa saudade latente que só as mães sabem sentir, contou da angústia de ser o suporte para outra pessoa, do sofrimento enrustida, encravado no peito. Contou pessoalidades que é melhor não recontar, mas vi que tinha uma história, um tanto quanto triste. Os pobres sofrem mais? Sim, sofrem a repressão de uma sociedade esquizofrênica. Mas e os outros, os que riem, sofrem? Também, e sem nem saber, são os reprimidos que aprendem a reprimir, sofrem sem nem saber. Não sabemos nem quem somos. Não quero saber do sofrimento deles, nem do dela, e nem mesmo do meu.
Nesse ambiente intencionalmente tão pouco humano, ela é a mais humana de todas. Ela só veio pra não perder o emprego. Ser o ridículo machuca.
Agora eu sei parte da história dela, e diz a pequena ética que não devo perguntar nem saber mais. No fim, continuo sem saber nem o nome dela.