A menina do canto do quarto não tem nome, só fome. É toda fome.
Não tem braços, hematomas.
Tem uma maquiagem natural feita de barro e água salgada.
Os cabelos crespos, de um amarelo branco recém penteados, agora caiam por entre os dedos ressequidos. Arrancados com raiva.
E vocês falam de Amor?Assim com letra maiúscula mesmo?
-Vocês falam demais!- grita a menina pra mim, que olho assustado enquanto meu cérebro refaz o discurso já preparado: ”Deus te ama!”.
(Nos cartões de aniversário que eu escrevia na infância sempre havia o epílogo “Deus te ama e eu também”. Ao menos agora eu não estava mentindo).
A menina do canto do quarto puxa com ódio os chapiscos da parede, chuta o ar, esmurra seus sonhos. Aumenta as feridas dos lábios mastigando o sangue velho. Enforca a goela em soluços. Arranha o focinho com o ranho seco.
Meu Deus, não é um animal!
-Não deveria ser.
Quase dormindo a menina cai a cabeça na quina da cômoda. Enquanto junta os papéis que caíram, não quer outra surra, vê aberto um livro azul.
“Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós; e nós devemos dar a vida pelos irmãos.” sublinhado com uma bic vermelha saltava.
Continuou sem fazer sentido.
Fechou a Bíblia e foi dormir.
E nós falamos em Amor?Assim com letra maiúscula mesmo? É bom parar de só falar não?