sábado, setembro 25

coisas idiotas

Ela me olhou, séria e compenetrada. Depois de uma tarde inteira de risadas não era o que eu esperava. Tomei-me de susto quando começou a falar, disse que tinha algo muito sério pra me pedir. Então, num tom mais baixo começou a dizer as palavras que iam mudar toda minha história, mas eu ainda não sabia disso.
-Vamos fazer alguma coisa idiota juntos?
-Quê?
-Uma coisa idiota ué, vamos fazer!

Tentei conter o riso, afinal momentos antes ela havia dito que era uma coisa séria, vai saber se ela ia gostar que eu risse disso, na verdade ainda tinham várias facetas nessa menina que ainda me intrigavam, e quem sabe essa é só mais uma das várias nuances que eu ainda não conhecia, então para não a magoar contrai os lábios, mordendo-os com força para que não escapasse nenhum sopro desse gás hilariante que me preencheu. Porém ela quebrou o silêncio com um beliscão no meu braço e uma gargalhada rasgada, entretido com aquela figura estranha eu não me segurei e gargalhei junto.
Passado o primeiro momento então quis entender melhor a proposta dela, tentei entender onde ela queria chegar. Não tinha medo de fazer coisas idiotas, na verdade as faço naturalmente sem nenhum impulso desejoso para que ocorra esta possibilidade. Entretanto, era a primeira vez que alguém me propunha isso, era a primeira vez que alguém colocava a idiotice como uma alternativa, e não como meu natural caminho de sabotagem reflexiva. Parei um pouco, olhando aqueles olhos brilhando, como os de uma criança que pede um doce pra mãe, e tomando juízo para uma resposta sincera, como as que eu gostava de dar. Respondi que sim.

Depois de acertados, começamos a discutir os termos do acordo. Primeiro, o que era fazer uma coisa idiota, aliás, antes de pensar na ação eu preferia pensar na essência da palavra. Para mim idiota sempre foi um termo que expressava algo ruim, denotava na verdade estupidez, tolice, loucura. Para ela também, mas era diferente. Enquanto eu via nisso tudo uma vergonha, ela via uma ótima oportunidade de escapar do corpo que a prende, uma chance de poder passear nas nuvens dos pensamentos e mostrar quem era de verdade, era uma espécie de arte que gostava de praticar.

Há de se convir, para mim é bem mais difícil essa idéia de mostrar para os outros quem sou eu. É uma característica masculina procurar esconderijos, coldres em que possam esconder suas armas, seja ela esperança de um futuro bem melhor, seja a alegria que escondo no meu rosto sério, ou seja alguns amores impossíveis. Porém sei que é só quando eu ultrapasso minhas barreiras e alcanço a plenitude de uma experiência que não depende só de mim é que posso finalmente me completar. Bem, fazer uma coisa idiota com uma pessoa agradável era um bom começo pra isso tudo.
As personagens dessa trama são completamente diferentes entre si, talvez por isso mesmo que essa amizade tenha graça no meio de tantas amizades insossas. Haviam se conhecido alguns meses antes, e embora tenham se visto bastantes vezes nenhum dos dois teve nenhuma vontade de estabelecer o mínimo diálogo um com o outro. Acho engraçado notar como surgem os laços mais fortes, geralmente eles se constroem do nada, e de repente parece que estavam ali desde sempre. Num piscar de olhos a gente aprender guardar carinho por pessoas que pouco tempo antes eram meros estranhos, a gente começa a querer o bem dela, começa a se preocupar e agir como um pai zeloso, por vezes cuidando mais do outro do que de si mesmo. É engraçado notar como nossa felicidade parece começar a ser dependente, de outro sorriso, de outros passos, de outros abraços, de outro amigo.

Uma conversa desinteressada foram as primeiras palavras destes dois, uma conversa de fila de banco, falaram sobre alguns amigos em comum, e viram quem eram eles que tinham tanto a compartilhar um com o outro. Algumas tardes sucessivas de brincadeiras que pareciam nunca ter não existido, uma intimidade estranha para poder estabelecer zombarias que só se têm com quem se confia, escárnios que não feriam, mas provocavam risos. Então vieram as primeiras conversas sérias, discussões da forma como ele gostava, retirava dela todas suas certezas e fazia com que virassem dúvidas, dessa forma é que se fazem as verdadeiras convicções, quando eu penso sobre elas e retiro delas a aura de dogmas indiscutíveis. Eram profundamente sutis as conversas que surgiam dessa nova amizade.

A primeira vez em que ele a viu chorando não sabia o que fazer, gostava de conversar com pessoas que estavam triste, assim elas podiam expressar realmente o que pensavam, mas dessa vez era estranho, sentia que realmente precisava ajudar. Quem sabe isso poderia ser uma falha dele, nas mágoas dos outros se sentia bem, não por o outro estar mal, mas por saber que no meio de tanta falsidade e superficialidade era uma pessoa diferente, que se importava com o que os outros sentiam. Porém tinha receios de que as vezes toda essa preocupação pudesse parecer um tanto quanto forçada, aos olhos do mundo as pessoas não podem ser boas, quem não deseja passar a perna no próximo deve ser alguma espécie de ator mal treinado que na verdade só espera uma chance de se promover às custas de alguém fragilizado. Não, não tentava abrigar o mundo nos seus braços, na verdade as vezes se sentia na verdade com um egoísmo estranho, pois não se preocupava com todos, apenas com aqueles com que realmente se importava. Um desconhecido chorando muitas vezes não lhe causava nenhuma sensação de estranheza, mas ver uma pessoa amada fraquejando fazia com que se quebrassem todos seus pedaços e lhe dava força para ser um apoio.

Era essa a situação diante do choro da menina que conhecia fazia tão pouco tempo, mas que já havia aprendido a querer bem. Aproximou-se, pensou nas palavras que iria dizer, recapitulou tudo que sabia que deveria fazer nesse tipo de momento, porém quando chegou perto tudo o que fez foi um abraço, e assim disse tudo o que alguém precisa ouvir quando não está bem. Foi então que pode se dizer que estava fazendo o que deveria fazer. Foi assim que ele passou algumas horas ouvindo aquela menina, com suas queixas bastante aceitáveis sobre um mundo inóspito, sobre uma família desestruturada, sobre as esperanças dos outros sobre ela, sobre o peso que carregava nas costas e que já não agüentava mais sozinha. Num abraço ele prometeu que faria o seu melhor para levar um pouquinho desse peso, prometeu que sempre estaria com ela, e esteve.

Foi assim que se construiu a história do que há de mais valioso para nós: amizades. Pessoas que realmente querem que a gente cresça, pessoas sem as quais não vale a pena continuar, pessoas que nos momentos mais difíceis são espelhos para que possamos caminhar em direção ao alvo num objetivo comum. Muita gente passa por nós, poucas pessoas despertam nossa atenção, um ou outro vira nosso amigo. Porém é nossa responsabilidade saber aproveitar essas que podem nos ajudar, e é uma responsabilidade maior ainda saber que somos culpados pelas opções que elas fazem, e temos de ajudá-las para se aproximarem de Deus.

Era isso que ela estava sendo para mim, minha companheira de viagem. Nos momentos de dor era a primeira ligação que eu recebia, ela prometeu que estaria sempre comigo, seja em presença, seja por cartas, seja em fotos, em músicas, seja em oração. Ela estava sempre comigo. Nas horas de alegria era a primeira a pular no meu pescoço e mandar que eu pelo menos fingisse um sorriso. E estamos agora num momento que acho também ser de felicidade, depois de passarmos uma tarde andando por ai, comendo alguma coisa que não fazia bem, simulando diálogos mudos de terceiros. E agora a proposta, fazer uma coisa idiota juntos.

O que era fazer uma coisa idiota?Tentaram pensar em alguma idéia diferente, mas nada parecia suficientemente idiota, na verdade essa amizade já soa bastante idiota, como no sentido bom que ela descreveu detalhadamente para ele. Foram para o meio da praça, na tarde de um sábado agitado no centro, transeuntes passeavam disfarçadamente evitando qualquer desconhecido que desejasse entregar algum panfleto. Então fizeram a primeira coisa que pareceu idiota para o momento, pularam. Ninguém pula no meio dos outros, e causa estranheza para todo mundo alguém que pula. Imagine então duas pessoas pulando no meio de uma praça movimentada. Mas isso na pareceu idiota o suficiente.

Nos meses seguintes, tentaram outras coisas, a primeira foi semelhante à primeira tentativa, mas em vez de pulos, gritos. Só pareceram malucos, e ainda que essa fosse a idéia ainda não se convenceram. Quando tentaram correr acharam que ele era algum bandido perseguindo ela, não foi uma boa idéia. Aliás, as idéias foram acabando aos poucos, e ela mesmo que antes tinha feito a sugestão estava desanimada.

Foi só então que perceberam que já há quase um ano faziam a coisa mais idiota, mais louca, mais tola, mais estúpida de todas. Eles se amavam! E a história se fecharia perfeitamente se eles amassem um ao outro como irmãos, a amizade continua sendo o que tinham de mais precioso de um ao outro. Porém era mais que isso, era amor, desses que ele insistia em não acreditar, desses que não pareciam sair dos livros. Era ela que estava demolindo todas as convicções dele, agora acreditava que havia uma pessoa criada pra ele, e era ela. Na verdade eu mesmo preferia agora que as história fosse apenas de amizade, na verdade é!Por mais confuso que isso possa parecer, nunca deixariam de ser melhores amigos, ainda que amantes continuavam a ser apoio um ao outro, e eram casal amigo de tantos que precisaram, e caminhavam juntos em direção ao alvo, e choravam juntos, e aprendiam a se amar juntos.

Fizeram coisas idiotas.