domingo, julho 11

Todos meus dias

Estava começando a anoitecer, ela ainda não havia falado nada. O círculo que a cercava aumentara no decorrer dessas três horas, as palavras continuavam mudas. Eu tinha certeza de que ela queria dividir com todos a dor, mas ainda não conseguia. Quando o sol finalmente dormiu, num fim de tarde de verão, ela abaixou a cabeça e chorou. O clima não era um dia chuvoso e triste como nos filmes, ao contrário, era uma noite de calor, dessas que o vento convida a gente pra passear na praia e sentar pra ver a lua. Parecia óbvio que o dia dela não combinava com nada disso. Você não sabe que tudo vai acabar bem?

Eram três da tarde quando me ligaram, ele preferiu não ligar pra família e pediu pra mim. Nunca entendi muito bem, mas de vez em quando acham que sou uma pessoa melhor pra esse tipo de coisa, eu liguei.

-Alô, boa tarde, a Sra. Camila?( boa tarde?boa tarde?)
- Sou eu, quem é? (como se ela já não imaginasse)
- É do hospital, você poderia vir até aqui? ( não era preciso dizer mais nada)
- O quê aconteceu? (ela já sabia)
- Só me pediram pra eu chamar a família no hospital ( por favor, não me obrigue a falar mais nada)
-...( ela não conseguia falar mais nada)

Avisei o segurança pra deixá-los entrar, foi o que aconteceu quando ela veio correndo e passou sem nem dizer palavra alguma. Era alta, na verdade era bonita, mas não era o tipo de coisa que eu ia reparar naquela hora. Pode parecer bobeira, até certa imaturidade, mas algumas vezes essas coisas são doloridas pra gente também. Ela não podia ainda entrar na UTI, eu tive que entrar, e enquanto digitava a senha ela me olhou, eu desviei, quando sai carregando a papelada ela ainda estava ali. Não me deixe pra baixo.

Eu tinha bastante coisa para fazer, mesmo pra um domingo. Com algumas guias nas mãos tentei me distrair, liguei pra um ou dois convênios, resolvi um ou dois problemas que não eram meus e quando já estava quase alheio vi a porta abrindo. Ela não estava só, haviam chegado pais, irmãos, primos, amigos, se não me engano 17 pessoas desceram até o saguão principal, 16 choravam, ela não. Deixa estar.

Durante todo esse tempo ela só olhava para cima, algumas vezes pra baixo, balbuciava algumas coisas, olhava pro brilho em sua mão direita. Uma hora uma das pessoas se ajoelhou na frente dela, alguns segundos se passaram só com olhares, então um abraço, forte, demorado, doloroso. Como será que é ver alguns sonhos simplesmente não mais existirem?
Ela tem 27, ele tinha 28. Ela tem uma vida pela frente, ele tinha leucemia. Fizeram alguns planos juntos, descobriram que era melhor planejar a vida assim, a dois. Viajaram, descobriram tanta coisa quando se descobriram, mas agora era tudo tão escuro. Todos os versos que haviam sido seu cotidiano até ali não iam mais estar. Sabe, eu sempre achei que as pessoas não morriam, por um tempo duvidei de mim mesmo, mas hoje eu tenho certeza disso, por mais que ela não possa mais abraça-lo ele vai estar ali. Não falo de presença sobrenatural, simplesmente de marcas, palavras e canções, ainda que a vida siga adiante ela ainda vai lembrar dele e de como ele a fez crescer quando olhar aquelas fotos antigas, ela ainda vai recitar o poema que ele fez num dia qualquer no parque, ela vai cantar as músicas que ele gostava e de repente pegar uma música triste e torna-la melhor.
Mesmo que não possa mais segurar na mão dele, ele vai estar com ela através de tudo o que ensinou. Foi por isso que ela chorou, era estranho mas ela estava feliz e agradecida, mesmo com toda dor era impossível não pensar que viveu um amor real. A vida vai ter novas histórias pra ela, algumas alegres, outras tristes que também fazem parte, mas sempre haverá um marca-páginas nesse capítulo.
Era noite, mas ai vem o sol.